Monday, September 07, 2009


Uma das últimas lembranças que tenho sua foi um dia em que eu acordei tarde e você não tinha ido trabalhar. Estava na sala, tomando um whisky, vendo o programa daquela velhinha já meio lelé, chamada Palmirinha. Você lembra uma vez que eu escrevi sobre ela e você achou a maior graça? Eu escrevi sobre o programa a que você estava assistindo, disse que a Palmirinha deve passar o fim de semana num sítio em Itupeva com a família comendo comidas gostosas e tomando sorvete Kibon napolitano junto aos netos. Você achou um barato. Eu não sei se foi neste dia, mas você anotou a receita de esfiha e fez para o jantar. Não me lembro muito bem de nossas últimas coisas juntas. Lembro de estar num curso sobre hai-kai ministrado pela Alice Ruiz, onde eu levava meus hai-kais que só eu acho graça e fingia fazer aquilo na hora. Mamãe ligou e disse que vocês estavam no hospital Santa Catarina, e como meu curso era logo ali do lado, na Casa das Rosas, fui até lá encontrar vocês. Você sentia dor e como a vida inteira a teve, não fiquei tão preocupada. Você estava morrendo e eu não sabia.
O que veio depois é difícil de lembrar, até mesmo porque são nessas horas que o corpo se anestesia de sentimentos pessoais e abre os braços para o lado prático. Lembro de você no hospital. Lembro do Chico levando uma música que ele tinha feito pra você. E eu sei que você era como eu sou, e deve ter ficado tão envergonhado, mas muito emocionado e não conseguiu demonstrar tudo o que se passou no seu coração. Eu odiei quando você voltou para a casa para se tratar aqui. Odiei porque aqui você era o rei e a casa não merecia te ver tão debilitado. E você foi ficando magro e sem condições de erguer a coroa e a capa de super-herói, imagem em que sempre me espelhei. Não demorou muito para você morrer. E eu nem me importei como se sentiria minha mãe e meu irmão, pois minha dor estava me rasgando e o tal lado prático me cobrando, como seu eu fosse obrigada a continuar depois disso, só porque todos continuam e a vida não é fácil pra ninguém. Foda-se tudo isso, foda-se mesmo.
Eu fiquei com medo de todos ficarem com peninha de mim, fiquei com medo de meus familiares acharem que eu ia ficar louca, então eu congelei. E até hoje, eu sei, você não ligaria, mas eles me acham a maior sem noção.
Eu sinto raiva de mim por ser alguém que jamais vai conseguir expressar a beleza que era meu amor por você. Ou então a falta que você faz. Eu me odeio por estar até hoje perdida e odeio quando as pessoas perto de mim adoecem e eu tenho que entrar em um hospital e conviver com pessoas profissionais super acostumadas com a desgraça. Eu não gostaria de respeitar nada disso. Mas eu me calo. E fico me sentindo inútil e fraca por não poder dar meu total apoio às pessoas debilitadas e por ganhar olhares frios e feios de pessoas super dispostas a fazerem o que eu não faço. Eu odeio aquele hospital que você ficou internado, odeio aquela vizinha filha da puta que veio vender cosméticos quando você estava morrendo no andar de cima. Odeio você não estar aqui para me ver e me entender como só você entenderia. Eu não sei se eu estaria mais ou menos perdida. Eu odeio ver meu irmão sobrecarregado, engolindo as mágoas, obedecendo a ordens. Eu odeio ver como a nossa vida rumou para o diferente. E eu odeio não me identificar com nada disso. E eu gostava quando você me contava coisas e nós concordávamos e ríamos, um humor só nosso. E de como as pessoas te achavam inteligente e lhe respeitavam por isso. E de como com você eu podia discorrer sobre tudo que me incomodava no mundo. E de como não tinha importância alguma passar o ano novo sozinha, pois, no dia seguinte, você já estaria de pé, fazendo almoço. Eu amava sua paixão por livros, eu amava sua paixão por cozinhar. Eu gostava de quando você achava graça de meus textos e de sua motivação política. Todas essas coisas hoje continuam sendo fundamentais em mim. Mas perderam muito de seu sentido, sem você aqui.
Enfim, eu tenho saudades e odeio, odeio o jeito como você morreu.

3 comments:

J.L.Tejo said...

Você acaba de contradizer sua postagem anterior. Não é possível que isso tudo seja fictício.

Se for, caramba, não bastam nossas dores, há que se inventar mais! ;)

Anonymous said...

darrrrrrr

nem gasta, isabel! haha

pra quem acompanha seu blog, naum precisa de adesivo explicativo!

Adoro seus escritos e me identifico deveras, sempre!!

Abraços

-Isabel Crozera- said...

ahh precisa sim!
depois minha mãe vem falar; você isso? vc aquilo? hahaha e eu falo; cuma???
dai ela; porra, foi fulano que me disse, ele leu no seu blog ahhahaha